segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Dona Celestina Novaes dos Santos Antunes

Em Grandes Vultos de Cruzeiro...







          Celestina Novaes dos Santos Antunes(DONA TITA)





Recordações de Uma Amizade

(na ótica do Engenheiro José sebastião Penido




Em alguma noite do mês de setembro de 1957, encontrei-me pela primeira vez com Dona Tita. Fui a sua casa para uma visita, em companhia de um casal amigo. Ao chegarmos, ela estava na sala nobre da fazenda a tocar piano. Disse-nos que, naquela noite, por estar se sentindo nostálgica, mergulhara no passado, através do piano, coisa que já algum tempo não fazia.

Encontramo-nos outras vezes. Fui convidado para uma refeição em sua casa, para outras e outras. Como morasse sozinho e com a grande afinidade surgida entre nós crescesse a cada contato, terminei por ser convidado permanente à sua mesa.  O fato de me tornar seu comensal rotineiro não diminuiu, porém, a distinção e fidalguia com que me tratava. Dava-me assento à cabeceira e preocupava-se constantemente em que eu fosse servido com o melhor.

Como nosso convívio se houvesse tornado tão freqüente, as ocasiões para conversas, para evocação de fatos passados e para confidências eram constantes. E, assim, pude ir conhecendo, sempre mais, aquela grande e especial amiga.

Por seu intermédio conheci também a seus familiares, já falecidos.

- O avô, morto quando ela contava somente cinco anos incompletos, foi figura que a marcou muito. Ela se lembrava de uma noite em que, deitada a seu lado, ele retirou do dedo um anel com brilhante e colocou-o no dedão do pé dela dizendo-lhe.

--- “Toma pequetita, isso é para você”.

Esse anel, que recebeu mais tarde outro engastamento, nunca mais saia de seu dedo anular e a quantos elogiavam o fulgor da pedra, dizia orgulhosa.
 --- “Foi de meu avô”.

Contou-me da forte ligação do major Manuel de Freitas Novaes com a família imperial. De sua mágoa com o banimento do velho imperador. Da visita que lhe fizera na Europa, no curto período em que D. Pedro II sobreviveu à perda do trono.

De tanta coisa relatada a respeito dele, vale lembrar o fato que, antes mesmo do inicio oficial de Cruzeiro como cidade, o Major Novaes, antecipando a desapropriação que seria inevitável, fez doação ao nascente município, dos terrenos de sua futura área central. Junto ao documento de concessão seguiu um esboço da planta da cidade, em que as ruas levavam os nomes da família imperial em peso. Escusado dizer que a oferta foi recusada e que houve necessidade de posterior desapropriação. Como indenização pela perda, foi feito pela Prefeitura um depósito de trinta contos de réis, que o Major nunca quis receber. Dona Tita acompanhou o assunto até se assegurar de que a verba do governo, posta à disposição da família, tinha caducado.


Foto da menina Celestina com seu padrinho Padre Ernesto M. de Fina   

A mãe de Dona Tita, Dona Rosalina Novaes dos Santos, era filha do Major Novaes, que teve três filhos, Rosalina era a única mulher. Criada com mimos e com muita abastança tinha temperamento forte, habituada a mandar e ser obedecida. O próprio Major Novaes se curvava aos seus caprichos e vontades.

O pai, Dr. Antônio Celestino dos Santos era um médico baiano. Sua mãe era aparentada do Barão de Rio Branco, José Maria Paranhos. Conheceu na corte Dona Rosalina. Casando-se com ela manteve a deputância, que mais tarde abandonou, por imposição da esposa. Ao contrário desta, era manso e cordato.

O casal teve três filhos, mediando um tempo de cerca de dez anos entre cada nascimento.

A mais velha, Dona Fortunata Novaes dos Santos, na intimidade “Bem”, foi uma linda moça. Afilhada do Conde D’Eu e da Princesa Isabel, privou do convívio dos príncipes imperiais na corte, ou aqui na fazenda Boa Vista, onde se hospedaram algumas vezes. Casou-se aos quinze anos. Aos dezesseis faleceu de parto e com ela morreu também o nascituro. Seu pai que acompanhou o infausto nascimento não clinicou mais, desde então.

O irmão mais novo, Antônio Celestino Novaes dos Santos, foi como quase todo caçula, mimado e cheio de vontades. Perdeu os pais cedo e, após suas mortes, ficou sob a tutela do vigário de Cruzeiro, Pe. Ernesto Maria de Fina. Nunca deu valor aos bens materiais, tendo dispendido tudo que herdou nos quase quarenta anos de sua existência. Ao morrer, deixou seis filhos.

Dona Tita, Celestina Novaes dos santos foi a filha do meio de Dr. Celestino e Dona Rosalina. Nasceu em Cruzeiro aos 29 de Outubro de 1893. Por ser menos bonita que a irmã mais velha, sua mãe que não escondia as preferências pela primogênita, dizia-lhe às vezes.

--- “ Ih Lili, você é feia!”

O pai que lhe era muito chegado, a consolava, porém, dizendo-lhe que era bonita por fora e por dentro.

Cursou o primário no colégio Bom Conselho, em Taubaté. Para ficar mais perto de casa, transferiu-se, então, para a Escola Normal de Guaratinguetá, onde estudou em reginem de externato, morando como pensionista em residência familiar. Já nos últimos anos dos estudos, conheceu o professor Virgílio Antunes de Oliveira e começaram a namorar. Sua mãe ao saber isso, não concordou e providenciou a transferência da filha para a Escola Normal de São Paulo, onde se formou Professora. Pretendia com isso afasta-la do namorado e dar-lhe oportunidade para conhecer um pretendente à sua altura, como costuma dizer. A oposição da mãe reforçou sua obstinação e o que poderia ter sido apenas um namoro, firmou-se e fortificou-se com a desaprovação materna e com as bênçãos do pai que, sendo semi-inválido e a essa época, era a segunda autoridade na família, casou-se com o professor Virgilio, em 21 de Dezembro de 1915, na cidade de Aparecida do Norte. Viajou de trem, no mesmo dia, para a lua de mel em São Lourenço. Ao fazer baldeação em Cruzeiro, observou que todas as janelas da fachada da fazenda estavam fechadas, como sinal de pesar pelo enlace.

Ao segundo dia da estada em São Lourenço, recebeu telegrama com os seguintes dizeres:

---“Seu pai mal, venha urgente. Sozinha. Rosalina”.

Leu o telegrama, rasgou-o sem mostrar ao marido e regressaram juntos. Passando pela mãe, ao entrar em casa, ouviu-a dizer entre dentes:

--- “ Eu disse sozinha”.
Ao que retrucou, também entre dentes: 

-- “Hoje sou casada. Ou os dois, ou nenhum “. E ficaram...

O convívio entre sogra e genro foi de pouco tempo. Alguns meses depois, Dona Rosalina caiu enferma, com câncer no fígado. Antes de ser removida para São Paulo, onde veio a falecer, deu o braço a torcer em relação ao casamento da filha - o que era raro – e chegou a lhe dizer. 

---“Você sabia a pérola que procurava...”

Dr. Celestino pouco sobreviveu à esposa, falecendo em seguida, cercado dos filhos e do genro.

Dona Tita, grávida do primeiro e único filho viu partirem em pouco tempo seus pais. A idéia da próxima chegada do filho a consolava e ajudava. Seu ser voltado para a maternidade, aspirava por sua plena realização na chegada do pequeno ser, tão ansiosamente esperado. O menino José Geraldo sobreviveu poucas horas a um parto muito difícil, para grande tristeza de seus pais.

Um ano depois, uma complicação ginecológica resultou na necessidade de delicada operação e trouxe para o casal a impossibilidade de geração de novos filhos.

O que a natureza lhes vedara de uma forma, eles obtiveram de outra. Abriram o coração e a casa a muitas outras crianças que criaram como filhos. Mary e Célio, em primeiro lugar, e depois seis sobrinhos, filhos de seu irmão Antônio Ivete, Antônio Filho, Ivan, Tereza, Aparecida e Sônia Celestina. Sem caráter de adoção recebeu mais tarde em sua casa o menino Arnaldo, e o criou, formando-o e encaminhando-o na vida.

Através do “Dispensário Infantil Capitão  Novaes”, criado em agosto de 1933; do “Posto de Puericultura Dr. Teodoro Quartim Barbosa”, de 1946, e da Creche Dona Tita”, de 1951, todos nascidos de sua iniciativa, centenas e centenas de pequenos cruzeirenses receberam carinho, cuidados médicos e alimentação no decorrer dos últimos sessenta anos.

Em vez de inutilmente lamentar a impossibilidade física de ser mãe, Dona Tita se empenhou, se dedicou, foi fonte de benesses e de vida para um sem número de crianças.

A vida do casal Virgilio/Tita, transcorreu toda em Cruzeiro. Nesta cidade batalharam, ajudaram, construíram, animaram e estiveram realmente presentes nos campos social, cultural, político e religioso.

A Santa Casa de Misericórdia, O Instituto Nossa Senhora Auxiliadora e Oratório Festivo Dom Bosco, O Cruzeiro Futebol Clube, Igrejas e tantas outras entidades cívicas da cidade tiveram a possibilidade física de existir, graças à doação de terreno, seja da parte de Dona Tita, seja pessoalmente por ela e pelo esposo.

Na política, o Professor Virgilio foi Prefeito Municipal e Presidente da Câmara de Vereadores. Dona Tita foi vereadora e candidata a Vice-Prefeita compondo a chapa do saudoso Dr. Nesralla Rubez.

No campo social ajudaram a fundar e participaram da Diretoria do Cruzeiro Futebol Clube incentivando  e até sustentando o time de futebol que, ficou famoso na região do Vale.

Afastando-se da direção desse clube, fundaram em 1933 a Associação Cívica Feminina com finalidades sociais e assistenciais. A essa entidade dedicaram-se com todo empenho. Ela veio a constituir-se em ponto de encontro da melhor sociedade de Cruzeiro, sendo famosos os bailes de debutantes e de “Rainha da Primavera”, realizados no mês de setembro de cada ano.

A residência do casal Santos Antunes sempre foi proverbialmente acolhedora e hospitaleira. Dona Tita era por excelência a anfitriã, eximia na arte de bem receber. Em sua espaçosa sala de visitas, praticava com atenção e solicitude as artes, hoje quase esquecidas, de conversar e de ouvir. Um único assunto era proibido em sua casa – falar mal de seus amigos, já que, em sua lealdade, ela não permitia a esses nenhum reparo. Todo dia 26 de junho recebia na fazenda para a afamada festa de São de João. Havia baile na sala e no porão e cateretê no pátio. O poeta lavrinhense Vasco de Castro Lima, evocando as saudades de Cruzeiro, se refere a essas festas inesquecíveis.

“Cruzeiro das tertúlias literárias
das serestas de noites legendárias,
quando a lua chegava mais bonita...
dos primórdios da Rádio Mantiqueira
dos tempos bons da Rede Sul Mineira
das festas de São João, na Dona Tita.”


Em junho de 1949, faleceu o prof. Virgílio. Dona Tita, abatida pela dor, quis recolher-se à tristeza de sua viuvez. Mas as necessidades de suas entidades sociais e os duros embates das lutas políticas, que ferviam na Cruzeiro daquela época, não lho permitiram. Sua posição de cidadã falou mais alto e ela continuou no afã de prover recursos ao “Dispensário” e ao “Posto de Puericultura” e era presença constante nas reuniões da “Câmara dos Vereadores”, onde o balanço de forças entre adversários não permitia a falta de um edil sequer.

Aceitou compor a chapa com o Dr. Nesralla Rubez, na posição de Vice-Prefeita e não conseguiu ser eleita.

Algum tempo depois, quando Jânio Quadros venceu Adhemar de Barros no Estado de São Paulo,a situação política em Cruzeiro ferveu e os eleitores da chapa vencedora resolveram comemorar a vitória na casa dos adversários, incluindo a casa de Dona Tita.  Esta, tranqüila e corajosa, enfrentou aos que queriam transpor o portão.

--- Eu atiro bem, todos sabem. Podem entrar, mas os primeiros vão levar bala!

Ninguém ousou entrar.

Quando conheci Dona Tita, tudo isso já era passado. Sua casa, ainda bastante frequentada, não tinha mais o movimento de outrora.

Via-a com muita freqüência. Acompanhei-lhe as doenças. Era um interlocutor atencioso. Ouvia muito, perguntava pouco. Fui testemunha de um problema sério de saúde ocorrido em final de 1969. Aos males físicos se juntava a preocupação de não querer deixar para seus herdeiros o ônus pesado da manutenção do solar. Optou por aceitar o tombamento e uma pessoa amiga conseguiu que esse tornasse realidade. Feito esse tombamento, foi-lhe bastante difícil aceitar a idéia de deixar aquela casa tão querida e tão cheia de recordações. Isso foi processo de meses, enquanto se construía a nova residência, mais confortável, para a qual enfim mudou. 

Nunca mais voltou ao solar dos Novaes. Cheguei a surpreendê-la a olha-lo de longe com os olhos marejados...

A nova casa era frequentada pelos familiares. A maior parte desses se havia mudado de Cruzeiro e se revesava nas visitas e nos cuidados à Dona Tita. Tereza a filha que ficara morando perto, quase vizinha, estava sempre presente e a ajudava com carinho e desvelo nas necessidades do dia a dia e nas doenças. Os amigos eram, porém, cada vez menos freqüentes. Um dia, quando fui levar a comunhão semanal, encontrei-a na rede, a cismar, sozinha. Olhou-me pensativa e disse-me:

---“Ah! Penido, de tantos amigos, você foi dos poucos que restou”

Adoeceu gravemente em agosto de 1976. teve que ser removida para a Santa Casa local, onde cercada do carinho dos filhos e dos amigos, confortada com assistência médica e espiritual, veio a falecer em 28 de Setembro de 1976, com quase 83 anos.


Cruzeiro pranteou-a e velou-a na sede da Câmara Municipal. Grande multidão acompanhou-a ao cemitério local, onde seus restos mortais se uniram aos de tantos antepassados que a ela saudosamente havia cultuado em vida.


              Quando eu era mais novo e saia para entrevistar os mais velhos da cidade, fui um dia até a residencia do Engenheiro Penido, e dele recebi esta beleza de descrição histórica, que ele tinha feito. E hoje, eu tenho a honra de postá-la em minha galeria de "Grandes Vultos de Cruzeiro". Espero que os escritores mais novos sigam este meu pequeno exemplo... Cruzeiro tem muitas histórias para serem contadas... basta somente saírem a campo, que elas aparecem. Não podemos nos furtar de conhecê-las, e muito menos deixar que elas se apaguem.



Um comentário:

  1. Sou da Cidade de Guarulho, estou morando na cidade de Queluz já alguns meses. Hoje estive em Cruzeiro e parei na borracharia bem de frente para essa fazenda.
    Me interessei pelo belo casarão e perguntei ao borrachaeiro do local, foi então que fiquei sabendo dessa História. Como profesdora de História e fanática por antiguidade, não podia dá outra coisa, viagei!
    Coisa mais linda, estou encantada e disposta a me aprofundar na História das cidades do Vale do Paraíba. Parabéns a vc que resolveu deixar essa relíquia para que eu pudesse ter conhecimento!

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