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Celestina Novaes dos Santos Antunes(DONA TITA)
Recordações de Uma Amizade
(na ótica do Engenheiro José sebastião Penido
Em alguma noite do mês de
setembro de 1957, encontrei-me pela primeira vez com Dona Tita. Fui a sua casa
para uma visita, em companhia de um casal amigo. Ao chegarmos, ela estava na
sala nobre da fazenda a tocar piano. Disse-nos que, naquela noite, por estar se
sentindo nostálgica, mergulhara no passado, através do piano, coisa que já
algum tempo não fazia.
Encontramo-nos outras
vezes. Fui convidado para uma refeição em sua casa, para outras e outras. Como
morasse sozinho e com a grande afinidade surgida entre nós crescesse a cada
contato, terminei por ser convidado permanente à sua mesa. O fato de me tornar seu comensal rotineiro
não diminuiu, porém, a distinção e fidalguia com que me tratava. Dava-me
assento à cabeceira e preocupava-se constantemente em que eu fosse servido com
o melhor.
Como nosso convívio se
houvesse tornado tão freqüente, as ocasiões para conversas, para evocação de
fatos passados e para confidências eram constantes. E, assim, pude ir
conhecendo, sempre mais, aquela grande e especial amiga.
Por seu intermédio
conheci também a seus familiares, já falecidos.
- O avô, morto quando ela
contava somente cinco anos incompletos, foi figura que a marcou muito. Ela se
lembrava de uma noite em que, deitada a seu lado, ele retirou do dedo um anel
com brilhante e colocou-o no dedão do pé dela dizendo-lhe.
--- “Toma pequetita, isso é para você”.
Esse anel, que recebeu
mais tarde outro engastamento, nunca mais saia de seu dedo anular e a quantos
elogiavam o fulgor da pedra, dizia orgulhosa.
--- “Foi de meu avô”.
Contou-me da forte
ligação do major Manuel de Freitas Novaes com a família imperial. De sua mágoa
com o banimento do velho imperador. Da visita que lhe fizera na Europa, no
curto período em que D. Pedro II sobreviveu à perda do trono.
De tanta coisa relatada a
respeito dele, vale lembrar o fato que, antes mesmo do inicio oficial de
Cruzeiro como cidade, o Major Novaes, antecipando a desapropriação que seria
inevitável, fez doação ao nascente município, dos terrenos de sua futura área
central. Junto ao documento de concessão seguiu um esboço da planta da cidade,
em que as ruas levavam os nomes da família imperial em peso. Escusado dizer que
a oferta foi recusada e que houve necessidade de posterior desapropriação. Como
indenização pela perda, foi feito pela Prefeitura um depósito de trinta contos
de réis, que o Major nunca quis receber. Dona Tita acompanhou o assunto até se
assegurar de que a verba do governo, posta à disposição da família, tinha
caducado.
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Foto da menina Celestina com seu padrinho Padre Ernesto M. de Fina |
A mãe de Dona Tita, Dona
Rosalina Novaes dos Santos, era filha do Major Novaes, que teve três filhos,
Rosalina era a única mulher. Criada com mimos e com muita abastança tinha
temperamento forte, habituada a mandar e ser obedecida. O próprio Major Novaes
se curvava aos seus caprichos e vontades.
O pai, Dr. Antônio Celestino
dos Santos era um médico baiano. Sua mãe era aparentada do Barão de Rio Branco,
José Maria Paranhos. Conheceu na corte Dona Rosalina. Casando-se com ela
manteve a deputância, que mais tarde abandonou, por imposição da esposa. Ao
contrário desta, era manso e cordato.
O casal teve três filhos,
mediando um tempo de cerca de dez anos entre cada nascimento.
A mais velha, Dona
Fortunata Novaes dos Santos, na intimidade “Bem”, foi uma linda moça. Afilhada
do Conde D’Eu e da Princesa Isabel, privou do convívio dos príncipes imperiais
na corte, ou aqui na fazenda Boa Vista, onde se hospedaram algumas vezes.
Casou-se aos quinze anos. Aos dezesseis faleceu de parto e com ela morreu
também o nascituro. Seu pai que acompanhou o infausto nascimento não clinicou
mais, desde então.
O irmão mais novo,
Antônio Celestino Novaes dos Santos, foi como quase todo caçula, mimado e cheio
de vontades. Perdeu os pais cedo e, após suas mortes, ficou sob a tutela do
vigário de Cruzeiro, Pe. Ernesto Maria de Fina. Nunca deu valor aos bens
materiais, tendo dispendido tudo que herdou nos quase quarenta anos de sua
existência. Ao morrer, deixou seis filhos.
Dona Tita, Celestina
Novaes dos santos foi a filha do meio de Dr. Celestino e Dona Rosalina. Nasceu
em Cruzeiro aos 29 de Outubro de 1893. Por ser menos bonita que a irmã mais
velha, sua mãe que não escondia as preferências pela primogênita, dizia-lhe às
vezes.
--- “ Ih Lili, você é feia!”
O pai que lhe era muito
chegado, a consolava, porém, dizendo-lhe que era bonita por fora e por dentro.
Cursou o primário no
colégio Bom Conselho, em Taubaté. Para ficar mais perto de casa, transferiu-se,
então, para a Escola Normal de Guaratinguetá, onde estudou em reginem de
externato, morando como pensionista em residência familiar. Já nos últimos anos
dos estudos, conheceu o professor Virgílio Antunes de Oliveira e começaram a
namorar. Sua mãe ao saber isso, não concordou e providenciou a transferência da
filha para a Escola Normal de São Paulo, onde se formou Professora. Pretendia
com isso afasta-la do namorado e dar-lhe oportunidade para conhecer um
pretendente à sua altura, como costuma dizer. A oposição da mãe reforçou sua
obstinação e o que poderia ter sido apenas um namoro, firmou-se e fortificou-se
com a desaprovação materna e com as bênçãos do pai que, sendo semi-inválido e a
essa época, era a segunda autoridade na família, casou-se com o professor
Virgilio, em 21 de Dezembro de 1915, na cidade de Aparecida do Norte. Viajou de
trem, no mesmo dia, para a lua de mel em São Lourenço. Ao fazer baldeação em
Cruzeiro, observou que todas as janelas da fachada da fazenda estavam fechadas,
como sinal de pesar pelo enlace.
Ao segundo dia da estada
em São Lourenço, recebeu telegrama com os seguintes dizeres:
---“Seu pai mal, venha urgente. Sozinha. Rosalina”.
Leu o telegrama, rasgou-o
sem mostrar ao marido e regressaram juntos. Passando pela mãe, ao entrar em
casa, ouviu-a dizer entre dentes:
--- “ Eu disse sozinha”.
Ao que
retrucou, também entre dentes:
-- “Hoje sou casada. Ou os dois, ou nenhum “. E ficaram...
O convívio entre sogra e
genro foi de pouco tempo. Alguns meses depois, Dona Rosalina caiu enferma, com
câncer no fígado. Antes de ser removida para São Paulo, onde veio a falecer,
deu o braço a torcer em relação ao casamento da filha - o que era raro – e
chegou a lhe dizer.
---“Você sabia a pérola que procurava...”
Dr. Celestino
pouco sobreviveu à esposa, falecendo em seguida, cercado dos filhos e do genro.
Dona Tita, grávida do
primeiro e único filho viu partirem em pouco tempo seus pais. A idéia da próxima
chegada do filho a consolava e ajudava. Seu ser voltado para a maternidade,
aspirava por sua plena realização na chegada do pequeno ser, tão ansiosamente
esperado. O menino José Geraldo sobreviveu poucas horas a um parto muito
difícil, para grande tristeza de seus pais.
Um ano depois, uma
complicação ginecológica resultou na necessidade de delicada operação e trouxe
para o casal a impossibilidade de geração de novos filhos.
O que a natureza lhes
vedara de uma forma, eles obtiveram de outra. Abriram o coração e a casa a
muitas outras crianças que criaram como filhos. Mary e Célio, em primeiro
lugar, e depois seis sobrinhos, filhos de seu irmão Antônio Ivete, Antônio
Filho, Ivan, Tereza, Aparecida e Sônia Celestina. Sem caráter de adoção recebeu
mais tarde em sua casa o menino Arnaldo, e o criou, formando-o e encaminhando-o
na vida.
Através do “Dispensário
Infantil Capitão Novaes”, criado em
agosto de 1933; do “Posto de Puericultura Dr. Teodoro Quartim Barbosa”, de
1946, e da Creche Dona Tita”, de 1951, todos nascidos de sua iniciativa,
centenas e centenas de pequenos cruzeirenses receberam carinho, cuidados
médicos e alimentação no decorrer dos últimos sessenta anos.
Em vez de inutilmente
lamentar a impossibilidade física de ser mãe, Dona Tita se empenhou, se
dedicou, foi fonte de benesses e de vida para um sem número de crianças.
A vida do casal
Virgilio/Tita, transcorreu toda em Cruzeiro. Nesta cidade batalharam, ajudaram,
construíram, animaram e estiveram realmente presentes nos campos social, cultural,
político e religioso.
A Santa Casa de
Misericórdia, O Instituto Nossa Senhora Auxiliadora e Oratório Festivo Dom
Bosco, O Cruzeiro Futebol Clube, Igrejas e tantas outras entidades cívicas da
cidade tiveram a possibilidade física de existir, graças à doação de terreno,
seja da parte de Dona Tita, seja pessoalmente por ela e pelo esposo.
Na política, o Professor
Virgilio foi Prefeito Municipal e Presidente da Câmara de Vereadores. Dona Tita
foi vereadora e candidata a Vice-Prefeita compondo a chapa do saudoso Dr.
Nesralla Rubez.
No campo social ajudaram
a fundar e participaram da Diretoria do Cruzeiro Futebol Clube
incentivando e até sustentando o time de
futebol que, ficou famoso na região do Vale.
Afastando-se da direção
desse clube, fundaram em 1933 a Associação Cívica Feminina com finalidades
sociais e assistenciais. A essa entidade dedicaram-se com todo empenho. Ela
veio a constituir-se em ponto de encontro da melhor sociedade de Cruzeiro,
sendo famosos os bailes de debutantes e de “Rainha da Primavera”, realizados no
mês de setembro de cada ano.
A residência do casal
Santos Antunes sempre foi proverbialmente acolhedora e hospitaleira. Dona Tita
era por excelência a anfitriã, eximia na arte de bem receber. Em sua espaçosa
sala de visitas, praticava com atenção e solicitude as artes, hoje quase
esquecidas, de conversar e de ouvir. Um único assunto era proibido em sua casa
– falar mal de seus amigos, já que, em sua lealdade, ela não permitia a esses
nenhum reparo. Todo dia 26 de junho recebia na fazenda para a afamada festa de
São de João. Havia baile na sala e no porão e cateretê no pátio. O poeta
lavrinhense Vasco de Castro Lima, evocando as saudades de Cruzeiro, se refere a
essas festas inesquecíveis.
“Cruzeiro das
tertúlias literárias
das serestas de noites
legendárias,
quando a lua chegava
mais bonita...
dos primórdios da
Rádio Mantiqueira
dos tempos bons da
Rede Sul Mineira
das festas de São
João, na Dona Tita.”
Em junho de 1949, faleceu
o prof. Virgílio. Dona Tita, abatida pela dor, quis recolher-se à tristeza de
sua viuvez. Mas as necessidades de suas entidades sociais e os duros embates
das lutas políticas, que ferviam na Cruzeiro daquela época, não lho permitiram.
Sua posição de cidadã falou mais alto e ela continuou no afã de prover recursos
ao “Dispensário” e ao “Posto de Puericultura” e era presença constante nas
reuniões da “Câmara dos Vereadores”, onde o balanço de forças entre adversários
não permitia a falta de um edil sequer.
Aceitou compor a chapa
com o Dr. Nesralla Rubez, na posição de Vice-Prefeita e não conseguiu ser
eleita.
Algum tempo depois,
quando Jânio Quadros venceu Adhemar de Barros no Estado de São Paulo,a situação
política em Cruzeiro ferveu e os eleitores da chapa vencedora resolveram
comemorar a vitória na casa dos adversários, incluindo a casa de Dona
Tita. Esta, tranqüila e corajosa,
enfrentou aos que queriam transpor o portão.
--- Eu atiro bem, todos sabem. Podem entrar, mas os primeiros vão levar bala!
Ninguém ousou entrar.
Quando conheci Dona Tita,
tudo isso já era passado. Sua casa, ainda bastante frequentada, não tinha mais
o movimento de outrora.
Via-a com muita
freqüência. Acompanhei-lhe as doenças. Era um interlocutor atencioso. Ouvia
muito, perguntava pouco. Fui testemunha de um problema sério de saúde ocorrido
em final de 1969. Aos males físicos se juntava a preocupação de não querer
deixar para seus herdeiros o ônus pesado da manutenção do solar. Optou por
aceitar o tombamento e uma pessoa amiga conseguiu que esse tornasse realidade.
Feito esse tombamento, foi-lhe bastante difícil aceitar a idéia de deixar
aquela casa tão querida e tão cheia de recordações. Isso foi processo de meses,
enquanto se construía a nova residência, mais confortável, para a qual enfim
mudou.
Nunca mais voltou ao
solar dos Novaes. Cheguei a surpreendê-la a olha-lo de longe com os olhos
marejados...
A nova casa era frequentada pelos familiares. A maior parte desses se havia mudado de Cruzeiro
e se revesava nas visitas e nos cuidados à Dona Tita. Tereza a filha que ficara
morando perto, quase vizinha, estava sempre presente e a ajudava com carinho e
desvelo nas necessidades do dia a dia e nas doenças. Os amigos eram, porém,
cada vez menos freqüentes. Um dia, quando fui levar a comunhão semanal,
encontrei-a na rede, a cismar, sozinha. Olhou-me pensativa e disse-me:
---“Ah! Penido, de tantos amigos, você foi dos poucos que restou”
Adoeceu gravemente em
agosto de 1976. teve que ser removida para a Santa Casa local, onde cercada do
carinho dos filhos e dos amigos, confortada com assistência médica e
espiritual, veio a falecer em 28 de Setembro de 1976, com quase 83 anos.
Cruzeiro pranteou-a e
velou-a na sede da Câmara Municipal. Grande multidão acompanhou-a ao cemitério
local, onde seus restos mortais se uniram aos de tantos antepassados que a ela
saudosamente havia cultuado em vida.
Quando eu era mais novo e saia para entrevistar os mais velhos da cidade, fui um dia até a residencia do Engenheiro Penido, e dele recebi esta beleza de descrição histórica, que ele tinha feito. E hoje, eu tenho a honra de postá-la em minha galeria de "Grandes Vultos de Cruzeiro". Espero que os escritores mais novos sigam este meu pequeno exemplo... Cruzeiro tem muitas histórias para serem contadas... basta somente saírem a campo, que elas aparecem. Não podemos nos furtar de conhecê-las, e muito menos deixar que elas se apaguem.